UMBRA

Apago a luz

E contemplo o mundo;

O som da pedra.

 

sobre o espetáculo

Este espetáculo é fruto de um debate pessoal e por isso altamente subjetivo do caminho tomado por cada um para descobrir um despojamento. Essa pergunta também lá está: o que é o vazio? Encontrámos três pontos cardeais — o silêncio, a escuridão e a lentidão — pelos quais pautamos o nosso percurso, ao qual chamamos mergulho.

Umbra divide-se em três momentos que perfazem o mergulho ao negativo, com respetivo prólogo e epílogo. No primeiro patamar um muro de caixas de cartão é destruído e rearranjado, permitindo a descoberta da cena. O espetador é confrontado com a cacofonia quotidiana, os gestos inconsequentes do dia-a-dia; é confrontado, literalmente, com a luz que impede qualquer existência da sombra.

Desse ambiente frenético brotam palavras que acabam por se cristalizar em três vozes distintas. São três narrativas que criam espaços de silêncio, onde cabe a imagem poética, onde cabe a imobilidade e a lentidão. Mas rapidamente a palavra perde o seu tónus, o seu sentido e transforma-se em som, em vibração, num ritmo telúrico de uma canção antiga, primordial.

Já livres da palavra, os corpos recuam para um tempo ancestral onde o ritual se afigura como uma resposta possível. Transportam o negro nas mãos dialogando com o espaço e com o silêncio; encontram na crueza do carvão o seu ninho. Este ritual transporta a plateia para a zona mais negra da escuridão, onde nada de nomeável existe. Surge uma figura luminosa, no fim de tudo, uma tentativa de tradução do desconhecido que é o fundo deste mergulho. Por fim, no epílogo, ao pressentirem o ressurgimento das luzes, as figuras protegem-se camuflando-se com o breu. A subida à superfície deixa o espetador no mesmo sítio de onde partiu, talvez diferente.

Um discurso sobre o vazio será sempre um nado-morto.

© Estelle Valente

imprensa

 

Crítica de Miguel Branco in revista Time Out

 

Temos medo de muita coisa. Por exemplo, temos medo de nos encontrarmos sozinhos no silêncio de um palco às escuras. E qual mete mais medo: o encontrarmo-nos, o sozinhos, o silêncio, a escuridão? Fugimos de nós, fazemos planos, temos playlists para tudo e pagamos as contas da electricidade.

É no escuro que se manifesta o verdadeiro poder da imaginação, para o prazer ou para a destruição. As imagens caem-nos sobre os olhos, umas atrás das outras, à velocidade do desejo, e cobrem o breu até nos dissiparmos no sono. Porque é que não conseguimos dormir? E se abrimos os olhos e está uma cara, uma boca negra ensurdecedora, um corpo demasiado sensível à gravidade para se conseguir mexer, paralisado e silente? E se abrirmos o olhos e conseguimos ver no escuro? Não é à toa que deus cria primeiro a Luz. Mas agora “apago a luz e contemplo o mundo, o som da pedra.”

UMBRA, nome que vem do último estágio da penumbra, é um espectáculo d’O Bestiário que tenta mostrar o negativo do nosso existir aqui e agora em três dimensões: o silêncio, a escuridão e a lentidão. Sob a direcção artística de Miguel Ponte e interpretação de Afonso Viriato, Joana Petiz e Teresa Vaz, cria-se um ensaio cénico aterrador a partir do debate colectivo e das leituras de cada um, entre elas Byung-Chul Han. Destaco-o porque, durante a peça, lembrei-me intensamente de um dos capítulos de A Sociedade do Cansaço. Nele, Han descreve como passámos da sociedade disciplinar, descrita por Foucault, a sociedade do “dever”, para entrarmos na sociedade produtiva, suportada pelo verbo positivo “poder”, onde cada um é empresário de si próprio. Numa, a sociedade da negatividade, não podemos, temos um dever. Noutra, a sociedade da positividade, podemos, infinitamente podemos, traduzido na máxima afirmativa “Yes, we can, caralho”.

Bem-vindos à vida na cidade global. Embarquem na correria destrutiva. Atenção ao intervalo entre o cais e a picadora.

Agora que podemos ser quem quisermos, por sermos disciplinados e (finalmente) produtivos, estamos entregues a uma liberdade coerciva em prol da maximização da produtividade. Por isso são necessários a evangelização do empreendedorismo, o exército de gurus da optimização, os hackers do crescimento, e as bibliotecas de auto-ajuda para os nossos negócios, tudo por uma descontraída e perpétua subscrição de 10,99, que podemos dividir por quatro. É mais eficaz explorarmo-nos a nós próprios que sermos explorados por terceiros. Já não há tempo para isso. É uma condição da ordem natural das coisas. Elimina-se a barreira entre explorador e explorado, com consequências graves para o indivíduo e, por extensão, para a sociedade: o tal Cansaço.

Em caso de emergência, lembramo-nos do novo credo “impossible is nothing”. E quando de repente damos conta que, afinal, nada é possível, que não somos capazes de poder, de fazer, de produzir, ou que falhámos em sermos nós próprios, ficamos doentes. É no seio da sociedade extremamente positiva que surge a epidemia da depressão.

Logo, é claro que UMBRA só poderia existir hoje. É o reflexo deste Zeitgeist da hiper positividade, do imparável fear of missing out, do inevitável burnout. É a rejeição do ruído de fundo para o multi-tasker. UMBRA tem o mérito de optar pelo caminho mais difícil, ir do caos ao vazio, e encher a cena de escuridão, silêncio e lentidão. Parte de uma multidão de três em contraluz, apressada, trabalhadora, ruidosa, produtiva, condenada à comodificação do seu corpo, dos seus pensamentos, dos seus desejos, dos seus afectos, e despe os sujeitos até se tornarem apenas corpos que se deixam pintar pela umbra.

Este é daqueles espectáculos que não se pode dizer o que é. Digo que não me lembro da última vez que ouvi tanto silêncio em cena, ao ponto de perder a noção do tempo, e de ficar confortável no meu medo do escuro. Digo que quando olhamos o vazio, o vazio olha-nos de volta. E talvez resida nesse olhar a salvação na era da positividade. Até lá, vou para sempre me arrepiar com aquele canto na escuridão, não sei se da Teresa se da Joana, de tão cego que estava.

Crítica de Gonçalo Amadeu Paiva

percurso

 

Estreia
Escola de Mulheres
7 a 10 de Fevereiro de 2019
Clube Estefânia, Lisboa

Reposição
Companhia de Actores
21 e 22 de Junho de 2019
Teatro Municipal Amélia Rey Colaço, Algés

Residências Artísticas
Largo Residências
Setembro a Outubro de 2018
Lisboa

DeVIR CAPa
23 a 30 de Outubro de 2018
Faro

ficha técnica e artística

2ª criação

 

direção artística e encenação Miguel Ponte

textos Afonso Viriato, Helena Caldeira, Miguel Ponte e Teresa Vaz

interpretação Afonso Viriato, Joana Petiz e Teresa Vaz

apoio à criação Helena Caldeira

cenografia e curadoria de figurinos Bruna Mendes

desenho de luz Manuel Abrantes

fotografia Estelle Valente

vídeo Jorge Albuquerque

produção Bestiário e Diana Almeida

cartaz Neurónio e Sérgio Condeço


agradecimentos
Ana Cris, João Belo, Mafalda Jacinto, Maria João Vicente, Ruy Malheiro, Raimundo Cosme, Raquel Ribeiro dos Santos, Sónia Rodrigues


apoios Fundação GDA, DEVIR CAPa, Casa dos Direitos Sociais, Largo Residências, Gerador, Causas Comuns


M/16

60min

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